Desde que assumiu a pasta da cultura, a Ministra Ana de Hollanda não conseguiu expor de forma clara e consistente o programa de sua gestão. Mas em algumas declarações e atitudes aqui e ali, Hollanda tem revelado o quanto está distante das políticas de cultura vigentes nos oito anos do governo Lula.
Comecemos pelo começo: o discurso de posse. Ressaltando que “continuar não é repetir” e que se via obrigada a dar passos novos e inovadores, a Ministra fez pelo menos dez referências à figura do criador e ao objetivo de colocar “a criação no centro de tudo”, em oposição às visões gerais da questão cultural brasileira, que “muitas vezes obscurecem – e parecem até anular – a figura do criador e o processo criativo”. Ao que parece, Ana de Hollanda quis marcar aí a principal diferença entre o seu projeto e as políticas da gestão anterior. Diferença que expôs principalmente no fim do discurso, ao justificar esse foco na criação a partir de uma razão, segundo ela, muito simples: “não existe arte sem artista”.
Uma mudança de rumos já se anunciava. E grande, pois restringir a noção de criação ao campo das artes foi justamente o que MinC sob o comando de Gilberto Gil e Juca Ferreira não fez. Ao contrário, o que se viu nos últimos anos foi a ampliação da ideia de cultura e uma valorização de saberes, fazeres, de modos de criação e de expressão que não se enquadravam como “artísticos” dentro das concepções predominantes da arte. Em seu discurso de posse, Gilberto Gil já anunciava essa mudança em relação às políticas culturais vigentes até então: “o que entendo por cultura vai muito além do âmbito restrito e restritivo das concepções acadêmicas, ou dos ritos e da liturgia de uma suposta ‘classe artística e intelectual’. Cultura, como alguém já disse, não é apenas ‘uma espécie de ignorância que distingue os estudiosos’. Nem somente o que se produz no âmbito das formas canonizadas pelos códigos ocidentais, com as suas hierarquias suspeitas”.
Pois bem. Parece que a nova Ministra quer priorizar as artes consagradas. É uma escolha. Mas até uma política para as artes deve ser ampla, inclusiva e menos hierárquica possível. Se não existe arte sem artista, sem a figura do criador, as manifestações artísticas também se concretizam através do trabalho do bilheteiro, do operador de luz, do lutier, da cabelereira, do marceneiro, da secretária, do produtor, do divulgador... Todos eles artistas em seus afazeres, todos co-criadores nesse mundo artístico cada vez mais complexo. A engrenagem, a chamada cadeia produtiva, abriga toda essa gente que também se alimenta e nos alimenta de arte.
Uma política para as artes deve fortalecer os vários elos dessa cadeia. De nada adianta colocar a criação “no centro do sistema solar das políticas culturais” e desconsiderar a infraestrutura e as dinâmicas de difusão, por exemplo. Criadores sem espaços e sem oportunidades para a exibição de seus trabalhos não vão muito longe. Por isso, o MinC, nos últimos anos, vinha trabalhando para o fortalecimento das rádios e TVs comunitárias e públicas, cinemas, cineclubes, festivais, mostras, lonas, feiras, museus, bibliotecas, entre outros espaços de difusão e fruição de bens artísticos e culturais.
Por fim, há outra figura imprescindível nesse universo: o público. Sem ele também não existe arte, pois a obra de arte se completa nesse encontro com as pessoas que a contemplam, que a discutem, que se emocionam com ela, que são por ela provocadas e que a recriam de diversas formas (sim, o público também cria!). Essa fruição das obras é um direito dos cidadãos, que deve ser garantido pelas políticas públicas. E, da mesma forma que os direitos à saúde e à educação foram universalizados no Brasil, uma política cultural ou artística deve buscar atingir toda a sociedade.
Esse talvez seja o ponto de maior distância entre a gestão Gil/Juca e as propostas de Ana de Hollanda. Em seu discurso, ela mencionou, obviamente, a cultura como direito de todos e o lugar da cultura na construção da cidadania. Falou também da necessidade de incluir cultura na cesta do trabalhador. Mas, ao colocar os criadores no centro de tudo, ao tratar de forma tão desproporcional o grupo dos criadores e os cidadãos como um todo, expôs uma visão hierárquica que Gilberto Gil, grande artista, nunca teve.
Artistas e criadores são indispensáveis à vida na Terra. Mas vivem no e do contato com todos aqueles que, por não serem artistas, não são menores nem devem ser desprezados pelas políticas públicas deste país.
Coletivo Cultura
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